Mobilidade Urbana

“Direito de ir e vir não é direito de dirigir”

Imagem de Ivson Miranda

É justo retirar uma via de estacionamento que “pertence” ao automóvel e destinar as ciclovias? 80% do espaço do viário destinado ao automóvel é um direito ou um privilégio adquirido? Por que o carro possuí privilégios em relação aos outros meios de transportes?

O cicloativista e diretor de participação da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo – Ciclocidade, Daniel Guth, concedeu entrevista a Agência Brasil e falou sobre o uso da bicicleta em São Paulo e a relação do automóvel com o espaço público. Guth é consultor em políticas de mobilidade urbana, e foi coordenador de implantação das ciclofaixas de lazer de SP.

Acompanhe na íntegra:

Agência Brasil: os modais bicicleta e carro não têm como se complementar sem que haja um enfrentamento entre as partes, como hoje vemos em São Paulo?

Daniel Guth: não é que existe um enfrentamento deliberado, do ponto de vista do discurso. Quando você tira uma faixa de estacionamento na rua e coloca uma ciclovia, os motoristas têm visto isso como enfrentamento. Mas isso não é enfrentamento, isso é só uma política de inclusão.

Quem se desloca de automóvel na cidade de São Paulo representa pouco menos de um terço da população, e esse um terço ocupa 80% da via pública. A via pública é para todos, não é só para o automóvel. Um único meio de transporte está ocupando 80% do espaço que é para todo mundo. Isso é chocante, isso é falta de equidade.

Quando você tira um pouco desse espaço para dar a outros modais, que têm tantos direitos ou mais, como diz a legislação, então as pessoas veem isso como enfrentamento. Mas isso tem a ver muito mais com um século de narrativa da indústria automobilística, da publicidade, do que efetivamente um enfrentamento na prática, como você citou.

Tem muito mais a ver com a sensação de perda de direitos que, na verdade, não são direitos, são privilégios. Estacionar na rua nunca foi um direito, sempre foi um privilégio, e um privilégio que a gente tem que aprender a abrir mão. Estacionar na via pública é uma privatização tosca do espaço público. Quando se retira estacionamentos, as pessoas sentem que perderam direito.

Há uma confusão entre direito de ir e vir e direito de dirigir. Não pode haver essa confusão. Quando não é permitido a você circular de carro, não está se cerceando o seu direito de ir e vir, você pode muito bem se deslocar, a pé, de bicicleta, de transporte público, uma série de outros modos de transporte. As pessoas confundem muitas vezes o direito constitucional de ir e vir com o direito de dirigir.

No caso do fechamento de ruas para carros, como ocorre na Avenida Paulista, o debate, em vez de ser feito no sentido de entender que esse espaço tem de ser devolvido às pessoas, que podem usufruir a avenida de outra maneira, as pessoas elas encaram isso como um enfrentamento, como se tivessem perdendo direitos. Isso tem a ver muito mais com uma análise subjetiva, social, cultural, do que com enfrentamento direto, um embate, uma acareação de ideias, de argumentos.

Agência Brasil: há muita resistência dos motoristas?

Guth: não há nenhuma medida de desestímulo ao uso do carro que não seja acompanhada de uma resistência dos motoristas. E não é falta de diálogo, não é falta de argumentos, não é falta de campanhas, é simplesmente o fato de que essas pessoas estão sentindo a perda de privilégios.

Todas as cidades do mundo que entenderam que o modelo “rodoviarista” tem um limite – há um ponto em que a cidade não anda mais porque não há sistema que comporte a quantidade de automóveis – passaram a criar medidas e políticas públicas que, de certa forma, criaram resistências porque tiveram que tirar espaço desse único modal que reinou nas cidades.

Nova York, Londres e Paris passaram por isso, Bogotá passou por isso, Buenos Aires tem passado por isso, a Cidade do México tem passado por isso, e não estou só falando de cidades europeias, estou falando de cidades vizinhas nossas. São Paulo tem de enfrentar isso com serenidade, com argumentação, porque não é uma questão de bicicleta contra o carro, transporte público contra o carro, não.

É uma questão de dar maior equidade àqueles que merecem ser incluídos, aqueles que sempre estiveram marginalizados, e isso significa obviamente tirar espaço do carro. Isso não é um enfrentamento, isso é um processo natural, que tem que acontecer.

Agência Brasil: em que medida o uso da bicicleta pode dar mais acesso à cidade e à cidadania?

Guth: a bicicleta é um veículo porta a porta. Você consegue sair da sua origem e chegar a seu destino com esse único meio de transporte. Isso dá autonomia, garante direito ao deslocamento. É um veículo econômico, não apenas porque é mais barato comprar uma bicicleta, mas também porque a manutenção é mínima, é com a sua própria energia que você vai se deslocar.

Ela não requer nenhuma outra mediação de combustível, a não ser a sua própria energia, o que também garante maior direito à cidade, uma vez que ela pode ser acessível a todos, todos que tenham condições físicas de utilizá-la. Outro elemento importante é a velocidade, a bicicleta traz um elemento importante para a relação com a cidade que é velocidade mais baixa.

Faz com que a pessoa tenha uma relação de maior troca, de maior diversidade de trocas com a cidade, seja com o comércio de rua, seja com as pessoas. Ao pedalar a uma média de 10 a 15 quilômetros por hora, você está muito mais afeito a consumir em uma loja, a parar para cumprimentar alguém, a conversar com as pessoas, a interagir com a cidade de outra maneira, coisa que com outros meios de transporte, no caso o carro, ônibus ou o metrô e trem, você não consegue fazer.

Há vários outros elementos, como promover a saúde, seja para a cidade seja para si mesmo, a sensação de pertencimento e de senso crítico da cidade, Todo mundo que passa a se deslocar de bicicleta naturalmente acaba tendo uma visão mais crítica sobre o meio urbano. Passa a sentir as agruras da cidade de uma maneira mais intensa, seja a violência do trânsito, sejam os cheiros, a falta de infraestrutura, a qualidade do asfalto, a feiura e a beleza da arquitetura. Ou seja, em cima de uma bicicleta você consegue perceber a sutileza dos elementos urbanísticos de maneira muito mais intensa, o que aguça o senso crítico.

Agência Brasil: hoje se comemora o Dia Mundial Sem Carro. Como você avalia as alternativas a esse meio de transporte em São Paulo?

Guth: é um dia de concentração de esforços para mostrar que outra cidade, do ponto de vista da mobilidade, é possível. São Paulo chegou a um esgotamento do modelo “carrocêntrico”, de só nortear as políticas de mobilidade em uma visão exclusivista nesse modelo “rodoviárista”. Um novo paradigma para a mobilidade urbana é necessário, e ele está em curso.

Nós temos o amparo bastante forte de legislações, sejam elas federais, estaduais ou municipais, que colocam a devida prioridade para a mobilidade urbana a partir do transporte coletivo, e depois dos modos ativos de transporte, que são majoritariamente a bicicleta e o pedestre.

Tendo esses marcos legais importantes, a gente entende que a cidade de São Paulo tem feito isso, talvez com um pouco mais de intensidade, e por isso tem gerado mais debates. [A cidade] tem passado a inverter a lógica que sempre foi vigente. E, necessariamente para isso, é preciso desestimular o uso do carro.

São Paulo tem tomado diversas medidas para desestimular o uso do carro, de maneira piloto. Mudanças que precisam ser feitas, como por exemplo a remoção de faixas de estacionamento nas ruas, a criação de mais infraestrutura cicloviária, a criação de corredores e faixas exclusivas de ônibus, a ampliação de calçadas, a retirada de vagas de estacionamento para ampliar as calçadas, para que quem queira caminhar a pé possa fazer isso com conforto e segurança.

O que o Poder Público faz ao dar prioridade ao transporte coletivo, aos modos ativos de transporte, não é nada mais do que seguir o que a legislação já manda. Então, não há nenhuma grande iluminação de um gestor, político ou prefeito. O que há é o cumprimento do que está na legislação. Que precisa ser intensificado.

Com as informações de Agência Brasil

Sobre o autor do post

Renato Lobo

Paulistano, profissional de Marketing Digital, técnico em Transportes, Ciclista, apaixonado pelo tema da Mobilidade, é o criador do Portal Via Trolebus.

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