Confira na íntegra, as palavras da promotora Belize Câmara Correia:
Hoje me debrucei sobre a petição inicial da ação promovida no dia 17/03/15 pelo Ministério Público de São Paulo, por meio da Dra. Camila Mansour Magalhães da Silveira, Promotora de Habitação e Urbanismo, contra as obras de implantação das ciclovias, ciclofaixas, faixas compartilhadas e rotas operacionais de ciclismo, que vêm sendo levadas a cabo pela Prefeitura da Cidade de São Paulo.
Obviamente não tive acesso aos documentos que acompanham a ação, mas a presente análise partirá da premissa de que eles comprovam as alegações formuladas pela nobre colega Promotora.
Antes de qualquer constatação, faz-se necessária a fixação de algumas considerações iniciais básicas.
Diferentemente do que muitos pensam, o projeto em questão não é uma invenção que “brotou” aleatoriamente da cabeça da Prefeitura de São Paulo. De fato, para além de toda a movimentação mundial em direção a uma mobilidade mais sustentável, menos poluente, mais democrática e que cause menos acidentes e mortes, existe uma Lei Municipal em São Paulo (nº. 14.266/2007) que dispõe sobre a criação do Sistema Cicloviário na cidade.
No art. 1º, a referida lei dispõe que “Fica criado o Sistema Cicloviário do Município de São Paulo, como incentivo ao uso de bicicletas para o transporte na cidade de São Paulo, contribuindo para o desenvolvimento da mobilidade sustentável. O parágrafo único diz: “O transporte por bicicletas deve ser incentivado em áreas apropriadas e abordado como modo de transporte para as atividades do cotidiano, devendo ser considerado modal efetivo na mobilidade da população”. O art. 3º da lei diz que o Sistema Cicloviário do Município deverá: articular o transporte por bicicleta com o Sistema Integrado de Transporte de Passageiros; implementar infraestrutura para o trânsito de bicicletas e introduzir critérios de planejamento para implantação de ciclovias ou ciclofaixas nos trechos de rodovias em zonas urbanizadas, nas vias públicas, nos terrenos marginais às linhas férreas, nas margens de cursos d’água, nos parques e em outros espaços naturais; implantar trajetos cicloviários onde os “desejos de viagem” sejam expressivos para a “demanda” que se pretende atender. Por ora, guardem as expressões “desejos de viagem” e “demanda”.
Por sua vez, a criação do sistema cicloviário determinada pela lei municipal paulista encontra respaldo na Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº. 12.587/2012), que está fundamentada nos seguintes princípios, entre outros (art. 5º): desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais; segurança nos deslocamentos das pessoas; justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços; equidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros. Também é orientada pelas seguintes diretrizes, entre outras (art. 6º): prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados; mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos de pessoas e cargas na cidade.
À vista do arcabouço legal acima citado, o primeiro ponto já se delineia facilmente: a implantação de infraestrutura cicloviária está conforme e em sintonia com as diretrizes mundiais de mobilidade e as legislações federal e municipal pátrias.
Da leitura da ação promovida pelo Ministério Público Paulista, conclui-se que não se contesta propriamente a opção política (e legal, como se demonstrou acima) de fazer as obras, mas sim a forma como elas estão sendo conduzidas.
Nesse contexto, a Promotora alega que pediu, mas a Prefeitura não teria enviado ao Ministério Público o projeto básico, o projeto executivo e o estudo de viabilidade técnica para a obra. Afirma, também, que a execução desta não foi antecedida da participação popular, segundo estabelece o Estatuto da Cidade. Em razão da ausência de tais requisitos, que estão ligados ao planejamento, conclui que há falhas graves em várias estruturas já implantadas (com a exposição de fotos) e que o projeto violaria, assim, o princípio da eficiência. São esses basicamente os fundamentos da ação.
Quanto aos projetos básico e executivo, constituem exigências legais para a licitação pública de obras e serviços (Lei nº. 8.666/93), mas apenas para aquelas que sejam de “engenharia”, segundo o doutrinador Marçal Justen Filho, expert em licitações. Não sou engenheira, porém creio que a implantação das ciclovias pode ser enquadrada nessa categoria e, assim, a elaboração dos projetos básico e executivo seriam, sim, requisitos legais a serem observados pelo ente público licitante. Portanto, parece assistir razão ao Ministério Público nesse ponto, a não ser que se demonstre que não se trata, na hipótese, de obra de engenharia ou mesmo que a Prefeitura comprove a existência dos mencionados projetos.
Quanto ao estudo de viabilidade técnica para a obra, algumas premissas me parecem fundamentais. A primeira delas é que a lei municipal que dispõe sobre o Sistema Cicloviário de São Paulo faz menção à sua implantação em locais que sejam “apropriados” e que se leve em consideração (resgatando o lembrete feito linhas atrás) os “desejos de viagem”, que devem ser “expressivos para a “demanda” que se pretende atender. Portanto, sob a ótica estrita da lei, parece intuitivo que, para chegar a esse diagnóstico, algum estudo ou pesquisa de campo seriam necessários. E foi nessa tecla que o Ministério Público bateu.
A questão tormentosa aqui parece ser a lei condicionar a implantação do Sistema Cicloviário a uma demanda existente. E aí invoca-se a velha estória do ovo e da galinha. Será que o Poder Público tem que esperar as ruas estarem infestadas de bicicletas para, só assim, considerar os “desejos de viagem expressivos para a demanda”? Será que as bicicletas não se multiplicariam se não houvesse uma infraestrutura satisfatória preexistente? Quantas pessoas você conhece que deixariam o carro se pudessem ir ao trabalho utilizando-se de ciclovia? Interessante que, na Holanda, o slogan utilizado para a campanha a favor da bicicleta foi “Construa o caminho e os ciclistas virão”.
Num país em que:
a) segundo o Ministério da Saúde, o trânsito mata mais de 5 pessoas por hora (http://
b) numa cidade em que autos e motos respondem por 90% da poluição, que, por sinal, mata mais do que o próprio trânsito (http://
c) numa cidade e em que metade da população é sedentária (http://g1.globo.com/sp/
d) num sistema baseado primordialmente no transporte particular motorizado, no qual 72 pessoas em carros ocupam cerca de 1000 m² dos espaços (públicos!!), enquanto o mesmo número de pessoas em bicicletas preenche 90 m² desses espaços (http://oglobo.globo.com/
e) em cidades onde o excesso de carros está usurpando das pessoas o espaço público da rua, que vem ser convertendo em estacionamentos gratuitos a céu aberto e onde as pessoas vêm colocando seu carro em local proibido, em calçadas e em toda parte (http://
f) num sistema de mobilidade em que horas preciosas de convívio com familiares, descanso, lazer ou mesmo do próprio trabalho nos são usurpadas, afetando a própria riqueza de uma cidade, estado ou país (http://
Pergunta-se: será que a viabilidade da bicicleta ainda precisa ser atestada por estudos técnicos? Será que sua viabilidade não é presumida e intrínseca considerando o modelo degradante, assassino, poluente, insalubre, injusto e antidemocrático do transporte motorizado individual? E será que, mesmo que não haja “desejos expressivos de viagem” por esse modal, ele não deve ser uma imposição do Poder Público frente aos números alarmantes de mortes que direta e indiretamente provoca, inclusive pela poluição? A questão já entrou na seara da saúde pública, como se vê.
Em minha opinião, a viabilidade técnica não pode ser expressa na soma das vontades espontâneas de cada cidadão, pois o modelo do automóvel particular é gradualmente destrutivo. Daí porque a demanda tem que ser fomentada, estimulada, alimentada e até imposta, o que somente se faz possível com a oferta de uma infraestrutura relativamente segura. Assim, tais circunstâncias fáticas, aliadas ao conteúdo da Política Nacional de Mobilidade Urbana, são suficientes para tornar questionável a exigibilidade de estudo de viabilidade a que alude a lei municipal paulista.
Já estou ouvindo o argumento: “mas e o transporte público de massas”? Será mesmo que temos que insistir no fato de que ele e a bicicleta não são excludentes, mas logicamente complementares? Isso parece óbvio. Daí porque o argumento do Ministério Público de que a Avenida Paulista é servida por uma rede satisfatória de transporte público, não convence. Até porque o transporte público não alcança todos os “cantinhos” e “artérias” das cidades, sem esquecer também que a viagem com a magrela acalenta o bolso, o espírito e a saúde.
Diferente do estudo de “demanda”, que, como dito, deveria ser dispensado pela lei, é a obediência a um projeto ou regras técnicas de engenharia que evitem falhas de concepção e execução, para a própria segurança do ciclista. Esse, sim, mostra-se fundamental. E, nesse ponto, a ação do Ministério Público traz fotografias que apontam alguns equívocos cometidos em São Paulo, como ciclovias em calçadas ou em ruas em que não há calçadas, ou mesmo provocando pontos de colisão entre ciclistas e automóveis etc. Pelo visto, falhas também aconteceram em outras cidades (http://g1.globo.com/
Obviamente erros pontuais não desmerecem o todo e, no atual contexto de inércia crônica que acometem os gestores para dar vida a sistemas cicloviários, tais falhas tornam-se insignificante na visão dos ativistas. E isso deve ser compreendido enquanto sentimento. Os usuários de bicicletas são tão esquecidos e carentes por ações efetivas, que ficam felizes com qualquer avanço, ainda que imperfeito. Curioso como temos inúmeros exemplos de obras viárias perigosas por erro de projeto ou engenharia (que podem levar a acidentes com morte), mas que nem de longe levantam a ira e a revolta lançadas contra as nada fatais ciclovias “defeituosas”.
O último fundamento utilizado pelo Ministério Público foi a ausência de consulta e participação da sociedade para chancelar a implantação da estrutura cicloviária, exigência prevista no Estatuto da Cidade. O argumento é realmente lindo! De verdade. A ausculta da população para determinadas intervenções dá vida à chamada “gestão democrática da cidade” e, pessoalmente, como promotora de urbanismo, sou fã desse princípio.
Mas eu me pergunto: será que para a construção de grandes obras e empreendimentos de impacto na cidade de São Paulo, sobretudo projetos de engenharia complexos e de grande envergadura (shoppings, viadutos, túneis etc), a população teve a chance de se manifestar? Foram convidadas para audiências públicas ou para formular sugestões e críticas ainda que “on line”? Pode ser que eu esteja equivocada e alguém me corrija se for o caso, até porque não moro na cidade, mas realmente nunca ouvi falar. Dois pesos, duas medidas.
É certo que um erro não pode justificar o outro (a ausência de participação popular numa determinada obra não pode justificar seja a exigência dispensada em outras). Porém é evidente a natural resistência às ciclovias por parte de uma sociedade esmagadoramente motorizada, que muitas vezes é desprovida de senso coletivo e que ainda não foi devidamente alertada por campanhas de conscientização. Como Promotora de Meio Ambiente e Urbanismo, acostumada a receber denúncias sobre essas matérias, posso apostar que, em sua maioria, tais pessoas só recorreram ao Ministério Público (isso dá trabalho…) movidas por incômodos essencialmente particulares, sem um olhar coletivo e de longo prazo para a cidade.
Pelos mesmos motivos de que não se poderia exigir estudo de “demanda”, creio que a participação popular (que deveria ter sido observada, sim) não poderia obstar a implantação do sistema cicloviário (porque previsto em lei), mas teria papel fundamental na formulação de sugestões e críticas que poderiam ter evitado ou mesmo minimizado falhas de projeto que findaram por acontecer.
Belize Câmara Correia (Promotora do Meio Ambiente, Patrimônio Histórico-Cultural, Urbanismo e Habitação da cidade de Olinda/PE.”
Por AMEciclo (Associação Metropolitana de Ciclistas do Grande Recife)