Em março deste ano o Jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria com o título: “Ciclistas se arriscam e cometem infrações no trânsito de SP”. Só que o texto não agradou os ciclistas de vários os lugares da cidade, entre eles a Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo – Ciclo Cidade, que caracterizou a matéria como “irresponsável” e de “baixa qualidade”. Leia a carta abaixo:
Não é para menos. Em partes da matéria o jornalista Giba Bergamin Jr “classifica como “infrações” situações em que ciclistas estão absolutamente de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro (CTB): o uso de capacete, por exemplo, não é obrigatório e o uso da faixa da direita (“bordos da pista”) é indicado à bicicleta, com prioridade em relação aos demais veículos.
Uma das fotos publicadas no site da Folha.com mostra uma faixa preferencial para ônibus que, segundo o CTB, deve ser compartilhada com o ciclista, ao contrário do que afirmam os textos da matéria e a legenda das fotos. No entanto, a difícil realidade da convivência entre ônibus e bicicletas em São Paulo faz com que os ciclistas optem pela segunda faixa de rolamento. O texto do CTB é insuficiente no que se refere às ultrapassagens realizadas por bicicletas ou mesmo à delimitação do fluxo delas em locais que possuem faixas ou corredores de ônibus, e é por isso que ele precisa ser aperfeiçoado (e não “revisto”, como foi apresentado pela reportagem). Erros primários também foram cometidos em fotos que simplesmente não correspondem à descrição de sua legenda, “acusando” ciclistas que estavam plenamente de acordo com o Código de Trânsito de estarem praticando infrações.
É de baixa qualidade porque faz uma grave inversão de valores. Define que ciclistas “se arriscam”, quando as posturas daqueles registrados nas fotos demonstram sua busca por segurança. Um exemplo: na abertura de um sinal, é arriscado estar entre os carros, pois eles aceleram mais rápido e podem se irritar ou, acidentalmente, avançar sobre a bicicleta. É muito mais seguro estar um pouco à frente, num espaço que não existe nas ruas, mas que pode ser um pouco antes ou depois da faixa de pedestres. Como não cabe nesses espaços, o ciclista acaba ocupando parte da faixa, especialmente quando percebe que não há ninguém para atravessá-la. A preservação da vida também é a razão de o ciclista buscar a calçada, um comportamento identificado pelo Jornal como próximo do criminoso.
O Jornal não conseguiu apurar que a falta de infraestrutura, fiscalização e educação de motoristas para compartilhamento torna impossível um deslocamento por bicicleta que seja ao mesmo tempo seguro e estritamente de acordo com as regras? O Jornal acha que um ciclista deve arriscar a própria vida para andar de acordo com leis que só ele cumpre? Ou o Jornal entende, como muitas pessoas, que o ciclista deve ficar em casa e não exercer um direito que é seu?
A inversão de valores se dá também quando o título “os ciclistas se arriscam e cometem infrações” lança uma ideia de que os acidentes que vitimam ciclistas são causados por eles próprios. Na verdade, está bastante claro, inclusive nos casos mais conhecidos de morte de ciclistas, que os incidentes acontecem por conta de alguma imprudência, descuido, desconhecimento ou má-fé por parte de motoristas: velocidade alta, confronto com a bicicleta e ultrapassagens sem a devida redução de velocidade e com distância inferior a 1,5 metro (como prevê o CTB) são apenas alguns exemplos. A matéria mostra não conhecer a rotina de um ciclista que pedala diariamente em São Paulo, pois as mortes, ponto máximo da tragédia anunciada, não são a única expressão do desrespeito – ciclistas são afrontados fisicamente e/ou recebem ofensas todos os dias nas ruas paulistanas.
A matéria também é de má qualidade porque utiliza uma organização de ciclistas, a Ciclocidade, para supostamente dar voz ao outro lado. No entanto, não veicula o conteúdo inteiro na internet, suprimindo a fala do diretor da organização. E, mesmo na reportagem completa – disponível apenas na versão impressa e para assinantes do site –, nota-se que a mensagem transmitida pela manchete, pelos textos em destaque e pelas fotos são muito mais visíveis que os comentários nos últimos parágrafos. O equívoco, para o qual é dado o destaque, não consegue ser esclarecido com as citações do diretor Thiago Benicchio, apresentadas de maneira discreta e confusa na última parte do texto.
Por fim, a matéria é irresponsável porque, ao inverter os papéis, dissemina a ideia, já muito consolidada entre uma parte dos motoristas, de que as bicicletas não devem estar nas ruas, que atrapalham o trânsito e que ciclistas são pessoas sem responsabilidade que devem ser punidas. Nas ruas, isso implica no aumento do conflito e, portanto, num maior risco de morte. Por isso, ao tomar conhecimento da matéria, tantos ciclistas se manifestaram, enfaticamente, contrários ao seu conteúdo”
A carta é finalizada dizendo que “A Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo se sente prejudicada ao ser colocada como “o representante consultado” quando, na verdade, sua posição apenas serve como coadjuvante para legitimar um pensamento exatamente oposto ao seu. Ao colocar o diretor da Ciclocidade como “o outro lado”, em uma matéria cheia de incorreções e que claramente buscou apenas culpabilizar vítimas, a Folha de S.Paulo assume o seu lado: cúmplice dos crimes de trânsito”
O jornal Folha de São Paulo é um veículo de grande circulação com jornalistas respeitados. No entanto, não é a primeira vez em que o canal mete os pés pelas mãos, e oque da a impressão é que estão pensando mais em vender a matéria do que a informação em si. lamentável…
Por Renato Lobo