Você é favorável que os proprietário de automóveis financie o transporte público? Na opinião de Marcelo Blumenfeld, sim, é possível e viável. Marcelo é mestre em planejamento de transportes pela Universidade de Leeds, e doutorando em engenharia de sistemas no Birmingham Centre for Railway Research da Universidade de Birmingham. É fundador da AHEAD Innovation Strategies, e integra o grupo de pesquisa e desenvolvimento da consultoria de transportes inglesa JMP Consultants. Foi palestrante convidado no TEDx University of Leeds em 2012.
Blumenfeld elaborou uma “carta aberta” endereçada ao ministro das Cidades Gilberto Kassab, publicada no site Mobilize Brasil. O ministro afirmou na semana passada que é contra a proposta de o proprietário de veículos passar a contribuir com o financiamento do transporte público. “Pode-se criar outras formas de financiamento do Poder Público para o transporte, mas não tributando o cidadão, que já está além de suas possibilidades”, disse.
Carta na íntegra:
“Carta aberta ao ministro das Cidades Gilberto Kassab
Prezado Ministro Gilberto Kassab,
Em virtude de sua recente afirmação sobre a contribuição de motoristas para o financiamento do transporte público, decidi escrever-lhe esta carta para apresentar alguns fatos.
Antes de tudo, gostaria de ressaltar que concordo plenamente que o brasileiro já está saturado com impostos. Porém, tal afirmação torna-se tendenciosa e política ao buscar apoio por meio de ameaças teóricas.
Para que se financie a melhora do transporte público, não é necessário impor um imposto adicional aos carros, e sim melhorar a legislação do repasse dos tributos sobre automóveis para os municípios. Não vou citar Londres e outras cidades de países desenvolvidos, pois muitos rangem e batem no peito que São Paulo não é Amsterdã. Não é mesmo, mas o repasse do IPVA diretamente à melhoria dos transportes públicos é uma conta lógica ao invés de uma medida populista a la “Robin Hood” para tirar dos ricos e dar aos pobres.
Atualmente, não há legislação sobre a utilização da arrecadação com o IPVA, nem mesmo para melhoria das vias. O IPVA é coletado pelo Estado. Deste montante, parte fica com o Estado para obras de maior porte, e parte é repassada proporcionalmente aos municípios. Estes valores não tem destino fixo na legislação brasileira, podendo ser aplicados em qualquer área. Pois bem, é um valor muito alto que poderia beneficiar consideravelmente a mobilidade nas cidades. Apenas em São Paulo, o Estado arrecadou quase 2 bilhões de reais no último ano. Imagine a extensão das melhorias que tal valor traria às cidades.
Tal repasse não é uma punição aos motoristas por usarem seus carros. O uso dos impostos sobre carros e motoristas é um ajuste sobre as externalidades causadas por eles. Pense bem. Os automóveis privados, apesar de transportarem cerca de 20% dos passageiros, ocupam 60% das vias públicas, enquanto os ônibus que transportam 70% dos passageiros, ocupam 25% do espaço viário nas grandes cidades brasileiras. Além disto, há também as estruturas para acomodar tal frota.
Um recente estudo da Poli-USP constatou que 25% (isto mesmo, um quarto) da área construída de São Paulo serve apenas para acomodar os automóveis. Imagine quanto das cidades poderia ser usado para habitação, cultura, lazer e comércio com este espaço. Por fim, e não menos importante, os carros são responsáveis por aproximadamente 70% das emissões globais dos transportes, que já chegam a 25% do total mundial (Agência Internacional de Energia).
Portanto, senhor ministro, os impostos sobre o uso do automóvel devem sim ser usados para financiar o transporte público. Não como punição, e sim a mérito de justiça. Caso contrário, as ruas deveriam ter 70% do espaço dedicado aos ônibus e apenas 30% aos carros. Além disto, os subsídios concedidos aos motoristas em forma de recapeamento, sinalização, manutenção e gerenciamento de tráfego não são usufruídos por não-motoristas, enquanto os transportes públicos são de absoluto direito de quem possui um carro.
O senhor, como ministro das Cidades, tem como objetivo a melhoria da qualidade de vida, da redução da desigualdade, da competitividade econômica e da sustentabilidade nas cidades brasileiras. E hoje, ao contrário de algumas décadas atrás, já está comprovado que uma cidade não atingirá seus objetivos apostando no carro como meio principal de transportes. Até mesmo Los Angeles, cuja frota de automóveis supera sua população, está reformando seu urbanismo.
Se, em sua função, o objetivo é equilibrar nossas cidades, há uma necessidade urgente de que esses recursos sejam repassados aos ônibus, à construção de metrôs e novas linhas de trens, ciclofaixas e melhores calçadas. Pois motoristas relutarão em trocar o carro pelo transporte público enquanto este não for de qualidade e conveniência competitiva. E, para que sejam competitivos, há de se usar os recursos captados das externalidades.
Além disto, tal medida é muito mais benéfica no longo prazo. Gostaria de apresentar ao senhor o conceito do efeito Mohring, do economista americano que demonstrou que um subsídio inicial para diminuir o intervalo dos ônibus em uma linha traz retornos financeiros a longo prazo através da maior demanda.
Outro estudo, que compara os custos públicos em acidentes, saúde, espaço etc., mostra que enquanto carros CUSTAM para a sociedade, esta GANHA economicamente quando este mesmo motorista usa a bicicleta. Mas para isto, é necessário que se invista na infraestrutura de qualidade que convença o motorista à troca. Logo, há de se usar o dinheiro do motorista que custa para a sociedade.
Portanto, senhor ministro, enquanto concordo com a impossibilidade de novos impostos sobre o uso do carro, escrevo-lhe esta carta aberta para mostrar que tal medida não é a única saída. Espero ter-lhe mostrado que a solução está no repasse dos impostos já cobrados, como é feito em diversos outros países. Tal repasse não significa uma penalidade, e sim o ajuste socio-econômico para que todos os habitantes tenham acesso à qualidade de vida e oportunidades.
Se quer o bem das cidades, não se torne refém do carro. A legislação correta pode fazer muito mais do que o senhor parece imaginar.”